Como Eunice Paiva ajudou etnia de MT a ter sua área demarcada
Os índigenas da etnia Zoró, de Mato Grosso, lutaram por mais de uma década para conseguir a demarcação de seu território, o que aconteceria em 1991. E parte desse êxito se deve a uma personagem cuja história tem sido resgatada no Brasil e no Mundo após o sucesso do filme "Ainda Estou Aqui", de Walter Salles, que concorre ao Oscar na noite deste domingo (2).
Trata-se de Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva, ou simplesmente Eunice Paiva, viúva do ex-deputado federal Rubens Paiva, morto pela ditadura militar na década de 70. No filme ela é interpretada por Fernanda Torres, que concorre ao Oscar de Melhor Atriz.
Advogada e indigenista conceituada, Eunice trabalhou por diversas etninas no Brasil. Em Mato Grosso, o mais destacado foi com os Zoró, um povo originário que, na época, enfrentava constantes invasões de posseiros e mineradores. Com cerca de 355 mil hectares, a reserva dos Zoró fica no Noroeste de Mato Grosso.
Com os conflitos na região intensificados pela chegada de colonos, o povo Zoró testemunhou, dia após dia, a diminuição de suas terras e o aumento da mortalidade em sua população.
“Éramos numerosos antigamente. Muitos habitavam esta região, até que um dia um fazendeiro envenenou o nosso povo na região onde moram os Cinta-Larga atualmente. O cheiro do veneno vinha na nossa direção e acabou envenenando muitas pessoas do nosso povo. Quando isso acontecia, não havia ninguém para enterrar os mortos”, conta o indígena Manuel Zoró, em trecho do documentário O Veneno Está no Ar.
Diante dos conflitos constantes na região, Panderewup Zoró, Ailton Krenak e outras lideranças indígenas brasileiras se organizaram e fundaram, na década de 1980, a UNI – União das Nações Indígenas. Por meio desse movimento, indigenistas de todo o Brasil tomaram conhecimento das invasões e se uniram na luta pela demarcação dos territórios indígenas.
“Existia um movimento indígena coordenado por Ailton Krenak. Ele veio com outros parceiros para a região Amazônica e para Rondônia, e começaram a identificar os problemas existentes nos territórios. Foi quando surgiu a questão dos Zoró”, conta a indigenista e servidora da Funai Leila Neiva, que trabalha com os Zoró há quase 40 anos.
De acordo com Lígia Neiva, Krenak serviu como elo entre os conflitos das populações indígenas da região Noroeste de Mato Grosso e a luta de antropólogos, advogados e indigenistas de diferentes partes do país.
“Ele abria espaços para colaboradores da sociedade e para antropólogos. Tinha um bom diálogo com pessoas que possuíam uma visão mais justa sobre os povos indígenas”.
Foi por meio desse contato que Eunice Paiva conheceu a luta dos Zoró e passou a produzir pareceres jurídicos para auxiliar na comprovação do território desta população.
“Eles lideravam esses embates com essa mobilização, porque os indígenas naquela época não tinham voz. Sem a Eunice e o apoio desse grupo de pessoas, provavelmente [os Zoró] teriam sido exterminados”, relata a indigenista.
Eunice Paiva e a luta pela demarcação do território Zoró
Em 1987, Eunice, juntamente com um grupo de amigos, entre eles a antropóloga Betty Mindlin, fundou o Iamá (Instituto de Antropologia e Meio Ambiente). A ong tinha como uma de suas principais linhas de atuação a defesa das populações tradicionais impactadas pelo Programa Polonoroeste (1983-1987), que visava pavimentar a rodovia BR-364, ligando Cuiabá a Porto Velho, e colonizar a região Noroeste do Brasil.
“Foi no contexto dessa avaliação que Eunice elaborou pareceres fundamentais para a causa indígena, como o que analisava a exploração ilegal de madeira nas terras indígenas e o parecer crucial para a demarcação da Terra Indígena Zoró, em 1987”, diz trecho de um artigo publicado por Betty Mindlin no jornal da USP, em janeiro de 2025.
Eunice Paiva assinou o parecer jurídico de 130 páginas que ressaltava a importância da demarcação do território.
Entre as justificativas apresentadas, a advogada destacava o direito à posse das populações originárias e analisava pareceres técnicos realizados pela Funai, que ressaltavam a importância da demarcação para a preservação do bem-estar da população.
“É de se concluir que nada impede a demarcação da área indígena Zoró, pois os direitos dos índios à posse de suas terras são direitos indisponíveis e não podem ser negociados”, escreveu ela no parecer.
Importância da demarcação
Graças ao trabalho de Eunice Paiva como jurista e do indígena Panderewup Zoró como líder da etnia, a área foi demarcada a partir de um decreto assinado em 29 de outubro de 1991, pelo então presidente Fernando Collor. O documento assegurou aos povos Zoró mais de 355 mil hectares até então no município de Aripuanã. Atualmente, a área pertence a Rondolândia, após sua emancipação em 1998.
De acordo com Lígia Neiva, a demarcação conferiu protagonismo aos indígenas e contribuiu para a preservação de sua cultura e história.
“O que mudou foi a busca pelo protagonismo na gestão territorial. Eles enfrentaram muitos desafios, incluindo forte pressão de grupos interessados na exploração da terra, como madeireiros e mineradores ilegais. Não só os Zoró, mas também o complexo Tupimondé – que abrange os povos Zoró, Gavião, Suruí e Cinta-Larga – vive sob constante pressão do agronegócio, garimpeiros e extração ilegal de madeira”, afirma Lígia.
Apesar da demarcação, ela relata que a população indígena da região ainda enfrenta pressão, mas que, pouco a pouco, resiste e luta por sua independência.
“A gente sempre diz que os Zoró são povos muito resistentes e diplomáticos. Eles têm trabalhado por meio de sua organização interna, que é uma organização social forte. Criaram uma associação, uma cooperativa, para fazer a gestão do território e buscar estratégias de proteção e ocupação. Hoje, são 35 aldeias distribuídas por todo o território”, contou Lígia.
Atualmente, com pouco mais de 900 habitantes, os indígenas Zoró, povos de língua Tupi-Mondé, mantêm uma fábrica de castanhas dentro do território, o que ajuda a preservar a floresta e garantir a sobrevivência das comunidades.









