Narcotráfico e legislação frouxa: a batalha da Polícia da fronteira em MT
A penumbra da noite que cobre as estradas e vicinais nas cidades que limitam o território de Mato Grosso com a Bolívia guarda muitos mistérios, mas nenhum deles parece causar efeito nos policiais do grupo especializado na segurança da fronteira do Estado, o Gefron.
O mapa deles é a memória construída ao longo dos anos, transitando dia e noite pelos milhares de quilômetros de terras mato-grossenses dos quais são responsáveis por fiscalizar, manter rondas ostensivas e fazer frente às ações repressivas.
O domínio do Gefron se estende por 980 km de extensão, entre trechos secos e aquáticos, que abrange 28 municípios. Quatro deles, Cáceres, Porto Esperidião, Vila Bela da Santíssima Trindade e Pontes e Lacerda estão na fronteira direta com a Bolívia.
Os principais crimes enfrentados são o tráfico de drogas, contrabando e descaminho de bens e valores, roubo e furto de veículos e invasão de propriedade.
Já que é desse limite sensível do território que partem os principais carregamentos de cocaína, pasta-base e armas provenientes da Bolívia. E para lá, também seguem veículos fruto de crime do Brasil.
Para sufocar as atividades ilícitas e formar uma espécie de "gargalo" por onde os criminosos serão obrigados a passar, existem três postos fixos estrategicamente implantados: a base operacional em Porto Esperidião, o Limão, em Cáceres, e o Matão, em Pontes e Lacerda.
Durante três dias, uma pequena fração desse percurso pelo qual o efetivo é responsável foi apresentado à reportagem do MidiaNews pelo 1º tenente da Polícia Militar Roger Garcia, um dos oficiais que opera na base, acompanhado do soldado Leão e do sargento Delgado.
Na saída da base, alguns integrantes da equipe ligam para as famílias. Pode ser o último contato por horas ou dias antes de entrarem na estrada. As jornadas, nome dado às escalas dos policiais, variam de 7 a 14 dias, mas podem se estender por dias a fio em grandes operações. O efetivo é majoritariamente de Cuiabá e Várzea Grande, mas alguns moram em cidades próximas.
Já na estrada, a feição dos policiais muda. Cada um segura seu fuzil SIG Sauer 762, e ao som de "El Campanero", de Los de Akino, seguem para o posto Matão. O trabalho é contínuo, e a atenção é requerida o tempo inteiro, não apenas no asfalto ou nas “cabriteiras”, por onde os criminosos transitam com os veículos furtados e roubados.
Seguindo pela MT-265, a cerca de cinco quilômetros da base, começam a surgir as vicinais que dão acesso direto à Bolívia, e marcam o início de uma região onde já ouve intensa atividade criminosa. Já na BR-174, sentido a Pontes e Lacerda, o soldado Leão aponta à esquerda para uma conhecida "cabriteira", chamada Estrada Vila Cardoso.
"Já pegamos muitos ali, nessa estrada. Hoje já não passam tanto. Eles sabem que a gente está por aqui", contou.
Segundo ele, essa vicinal é como uma trincheira, que dá acesso à Pontes e Lacerda, Cáceres e, consequentemente, à Bolívia, o que destaca que, na área, cada desvio pode ser usado para o crime.
No trajeto, um caminhão incendiado às margens da rodovia ressaltou o foco no trabalho ostensivo dos policiais. O Gefron não atende acidentes comuns, mas atua se houver vítimas presas às ferragens ou necessidade imediata de socorro. O foco principal continua sendo o crime fronteiriço.
"Nós temos uma missão bem definida. Não que a gente não atue nunca nesses casos. Por exemplo, uma equipe se deparou com um acidente, vindo de Rondônia, um corpo de instrução. Viu as vítimas presas às ferragens e fizeram o resgate. Era uma situação em que a vida de quem estava ali estava em risco. Em situação de bens materiais, a gente não intervém", explicou o tenente Garcia.
No posto Matão, a equipe foi avisada sobre o "efetivo extra" que estava chegando e foi recebida com um jantar simples, mas feito com capricho. A refeição foi uma junção do que a cozinheira deixou pronto do almoço: arroz, feijão, mandioca frita, farofa de carne, e porco frito, além do frango cozinhado na hora por um dos policiais.
Já tarde da noite, os policiais do posto realizaram três abordagens a veículos diferentes que passaram por lá. O tenente Garcia explicou que por anos aquele trecho foi muito utilizado por criminosos, mas a instalação do posto asfixiou a atividade criminosa ali.
Apesar de o fluxo criminoso ter diminuído, ainda exige vigilância e cuidado nas vistorias. Primeiro, um caminhão-guincho foi parado, depois um ônibus de viagem, e novamente o guincho, que retornava com uma Fiat Strada recém batida. Todos os motoristas foram entrevistados e os veículos minuciosamente fiscalizados. Após constatada nenhuma irregularidade, seguiram viagem.
Ao fim da apresentação do Matão, a equipe retornou para a base operacional, chegando por volta de 0h40. No dia seguinte, o mesmo efetivo, composto pelo tenente Garcia, o soldado Leão e o sargento Delgado, apresentam o posto Limão, em Cáceres.
Dessa vez, os policiais decidiram entrar em uma das "cabriteiras", chamada Laranjal, por onde ainda há fluxo de veículos fruto de furto ou roubo. Logo se deparam com um Volkswagen Gol. Em abordagem padrão, eles sinalizam ordem de parada e imediatamente todos na viatura desembarcam com os fuzis empunhados.
É nessa hora que o ambiente fica tenso, o “clima” muda de forma abrupta. A postura dos policiais é intimidante, e mostra, na prática, o que o tenente Garcia havia contado sobre a importância da preparação psicológica do policial, através do olhar, da postura, do tom de voz e a forma de se mover durante uma abordagem.
Em outra ocasião, a suspeita pairou sobre um Ford EcoSport que estava com o porta-malas lotado de objetos. De início, os policiais acreditavam que se tratava de contrabando e ordenaram a parada. O motorista, nervoso, desceu do veículo para a vistoria e derrubou a chave no chão.
Apesar do comportamento suspeito, nada criminoso foi encontrado, apenas uma arma de airsoft regularizada, que ele tentou esconder empurrando o encosto do banco traseiro sobre o objeto.
Essa postura intimidante é uma das táticas de pressão emocional que os policiais usam também nas operações na mata, onde o cenário pode mudar rapidamente. Segundo Garcia, a maior parte dos fugitivos desiste do confronto ao se deparar com a presença dos policiais. É uma vitória sem troca de tiros.
Apesar da imponência, as abordagens seguem o princípio da proporcionalidade. O policial reage na medida em que o suspeito oferece risco. A conduta é rígida, mas técnica, o que trouxe notoriedade ao Gefron, e os próprios integrantes afirmam que os criminosos reconhecem essa reputação.
Quando ocorrem as apreensões de drogas, por exemplo, e a quantidade não corresponde ao volume transportado, as facções suspeitam da mula, não dos policiais.
É assim que o Gefron mantém controle sobre uma das regiões mais complexas e estratégicas de Mato Grosso, onde cada estrada, por menor que pareça, pode ser uma rota do crime.
As funções, o arsenal e os treinamentos
Os policiais seguem funções dentro do Gefron. Há espaço para todos, o que faz com que seja um ecossistema muito bem equilibrado e amparado com um arsenal de ponta, que inclui fuzis SIG Sauer 716G2, pistolas 9 mm, equipamentos de visão noturna e térmica, e munições específicas para cada operação.
Entre as funções, há o patrulhamento móvel, a patrulha de interdição, que fazem os adentramentos na mata, os cachorreiros, responsáveis pelo trabalho com os cães farejadores, a equipe de inteligência e os policiais que atuam no setor administrativo.
O patrulhamento móvel, também chamado de volante, é como o descrito no próprio nome. São os policiais que patrulham as estradas, vicinais. A interdição, por sua vez, trabalha com o rastreamento das mulas do tráfico e criminosos escondidos nas matas.
Nessas áreas fechadas, quem domina são eles, por meio de intenso treinamento que os permitem identificar movimentações mínimas, rastros e padrões de passagem que, para qualquer outro olhar, passariam despercebidos.
As operações na mata são parte essencial do trabalho, devido à geografia da região.
Em 2023, cinco operadores da patrulha da interdição participaram da operação Canguçu, uma caçada aos ladrões do "Novo Cangaço", que portando armamento de grosso calibre, assaltaram a seguradora Brink's em Confresa.
Na ocasião, os operadores ficaram 42 dias no rastro dos assaltantes, e conseguiram localizar e reunir informações sobre os fugitivos que tentaram se esconder na mata em Tocantins. Esse resultado foi um dos mais prolíficos da história da patrulha da interdição.
O soldado Leão, em uma das operações, camuflado na mata, embaixo de chuva, avistou a poucos metros um grupo de seis mulas com carregamento de 17 kg de drogas.
A tecnologia também é grande aliada dos policiais. No centro da inteligência, instalada na base operacional, os policiais monitoram pontos estratégicos por meio das câmeras OCR, do programa Vigia Mais MT, que fazem leitura de placas.
Alguns deles foram treinados em cursos para analisar imagens e adulterações em veículos. São treinamentos específicos, com cursos voltados exclusivamente à identificação de irregularidades.
No canil do Gefron, em Cáceres, atua uma das três mulheres que integram o Gefron, a investigadora da Polícia Civil, Vanessa de Paula. Lá, os policiais trabalham com quatro cães da raça malinois, chamados Aika, Tupã, Alpha e Loki. Todos são treinados para farejar drogas.
Em uma das ações, a investigadora levou Aika para farejar um caminhão frigorífico suspeito. Em poucos minutos, a cadela encontrou mais de 700 kg de cocaína e pasta-base escondidos entre o carregamento de carne.
No pátio do canil, foi demonstrado como Tupã, reconhecido como o mais enérgico da matilha, conseguia em um tempo curtíssimo encontrar droga escondida próximo ao escapamento de uma Hilux SW4. O veículo utilizado na demonstração havia sido furtado em outubro e, recuperado, e aguardava devolução ao proprietário.
Impulsão no desenvolvimento
A presença do grupo também modificou a dinâmica das cidades. A construção de novos asfaltos, como o da região do Matão, acompanha o avanço da segurança. Dessa forma, aumentam investimentos, moradores, propriedades rurais e consequentemente a produção da região.
O policiamento trouxe o que faltava: segurança para que o comércio se movimente livremente, e expandisse o olhar do Estado na infraestrutura local. De janeiro a outubro deste ano, o Gefron foi responsável pela apreensão de 19,5 toneladas de drogas, número superior a todo ano de 2024.
Nos últimos sete anos, os policiais ainda apreenderam 64 aeronaves monomotor e 1.976 veículos, como motocicletas, carros, caminhonetes e carretas, que são utilizados tanto para o transporte de drogas quanto para dar apoio a grupos de traficantes.
Isso se converte em interesse pela região. Apesar de ainda haver estradas de terra, vários trechos, não só os da proximidade da comunidade Matão, foram recentemente asfaltados. A "calma" faz com que a vida seja digna nas regiões afastadas da Capital.
São imensidões de fazendas com criações de bois, plantações e chácaras, além da movimentação de carretas que transportam cargas pela região.
A população local, antes desconfiada, hoje abriga policiais em missões longas, oferece comida, água, combustível e informações. Entre crianças e adultos, muitos já identificam o efetivo de longe, e agradecem pelo trabalho.
Brechas da legislação
Uma das grandes queixas das forças de segurança, principalmente as que lidam com crimes do dia a dia, é a facilidade com que os criminosos são liberados após a prisão. O tenente-coronel Airton Feitosa, coordenador adjunto do Gefron, criticou a frouxidão do Código Penal, e cobrou por mudanças que tornem a legislação mais dura.
"A forma com que a lei atua, essa série de chances, literalmente essa frouxidão, acaba por decepcionar bastante os operadores de fronteira. É muito mais comum do que se imagina, fazemos a prisão de pessoas que já foram presas, até por nós mesmos, outras vezes", disse o tenente-coronel.
É comum ouvir dos agentes de segurança que frequentemente vêem rostos conhecidos nas abordagens. Eles sabem que se trata de uma pessoa com histórico criminal extenso, mas o que podem fazer é dar o flagrante, caso haja alguma ocorrência. De outra forma, o que cabe a eles, quando não há um crime em curso, é liberar o criminoso.
"O ano passado nós tivemos dois casos clássicos, onde um juiz plantonista liberou duas pessoas que faziam um transporte de 450 quilos de entorpecente, de cocaína. Esse caso, eu cito porque até o governador do estado, Mauro Mendes, se pronunciou publicamente, foi à imprensa falar sobre isso", contou.
"Outra situação ocorreu conosco também na região de fronteira onde nós fizemos a apreensão de uma carga de quase meia tonelada de cocaína, e menos de 60 dias depois essas mesmas pessoas que foram presas, estavam transportando mais meia tonelada. Ou seja, já tinham saído e já estavam praticando o crime de tráfico novamente".
"De toda forma isso mexe com o policial. Nos deixa decepcionados, mas não é o bastante para nos fazer parar de lutar. Com certeza isso é algo que nos deixa triste, porque a gente vê o quanto o nosso país tem condições de crescer, condições de se tornar uma referência em todas as áreas e ainda lutamos. Mas estamos atrasados nesse quesito de punibilidade", completou.
Fundação do Gefron
Em 13 de março de 2002, através do Decreto Estadual 3994, foi implementada a criação da Polícia da fronteira. O efetivo, que atualmente conta com policiais militares, policiais civis e até bombeiros, foi pensado especificamente para o trabalho especializado de prevenção e repressão aos crimes transfronteiriços.
Em entrevista à Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp), em 2022, o criador do Gefron, o coronel da reserva da Polícia Militar, Leovaldo Emanoel Sales da Silva, contou que foi algo inédito e que mudou a realidade do policiamento na região, que na época vivia realidade de extrema violência.
"Ninguém acreditava. Todo mundo pensou que eu estava louco, que eu estava deslumbrando algo fora da realidade. Nós construímos as bases e adquirimos, na época, 34 caminhonetes, 12 motocicletas, armamento para cada policial como pistolas e fuzis automático. Mato Grosso passou a ser o quarto estado da federação a operar com fuzil Sniper. O efetivo era de 105 policiais, sendo 80 PM e 25 PJC", contou.
Essa decisão, que o coronel chama de "aventura séria", elevou a região a ser uma área segura e produtiva. O Gefron, que opera seus recursos de forma independente a cada ano, foca em desenvolver as habilidades dos policiais com cursos, arsenal de ponta e também nas estruturas, que precisam sempre de olhar atento do Estado.










